No início de O corpo em que nasci, o leitro se depara com uma narradora ainda criança, lutando contra uma obstrução de nascença de uma de suas pupilas, que a deixa quase cega de um dos olhos. Os médicos aconselham a seus pais uma série de estímulos oculares, o que faz com que, por anos, ela precise enfrentar diariamente a presença de um curativo tapando o olho sem problemas, para que o "defeituoso" se desenvolva. Fora a tortura de passar quase todo o dia tateando o mundo formando borrões sem forma, para apenas de noite olhar pessoas e objetos com nitidez, o tampão faz com que tenha que enfrentar os comentários curiosos e maldosos de seus colegas de classe. Desde então, ela passa a se sentir uma outsider, sempre issolada, sem se integrar ao ambiente.
A imagem do olho que abre o romance ("Nasci com uma auréola branca, o que os outros chamam de mancha de nascimento, sobre a córnea do meu olho direito") serve para refletir sobre a temática de todo o romance. É através do olhar dos outros que a narradora de O corpo em que nasci encontra pelo caminho, que a visão de si mesma vai se formando. E ela se sente diferente, inadequada. Mas, ao longo das páginas, os conceitos do que é ser diferente e do que é ser normal estão sempre sendo postos em cheque, revelando uma fronteira quase imperceptível entre um e outro.
Narrado do divã de um analista, a narradora despeja um longo depoimento sobre sua infância e adolescência, as marcas irremediáveis que esses acontecimentos deixaram em sua personalidade e o caminho até a aceitação de si mesma. A menina enfrenta ainda a sinceridade desmedida dos pais, que tentam viver os preceitos de liberdade e honestidade dos anos 1970, deixando a filha sempre confusa, com respostas muito mais honestas do que sua maturidade pode compreender; os efeitos de uma vizinhança cercada de exilados argentinos e chilenos, fugidos de ditaduras, com suas crianças traumatizadas e de olhar triste; a aparente injustiça do divórcio; a prisão do pai.
Inspirado na trajetória da autora, o livro acompanha ainda aspectos de sua vida adulta: noites de autógrafos, viagens e toda uma rotina de eventos literários. Olhar para uma foto da autora é comprovar a presença de um olho marcado por uma mancha branca. Mas, ao final do romance, Nettel duvida da veracidade daquilo que relata e declara que, o que conta, não pode ser comprovado. O jogo é justamente esse. Não importa o quão semelhantes são a narradora e a autora, as fronteiras entre ficção e realidade já aparecem irremedivelmente borradas para o leitor.
* Esta contraportada corresponde a la edición de 2013. La Enciclopedia de la literatura en México no se hace responsable de los contenidos y puntos de vista vertidos en ella.